José Kappel

Um amor sobrevive a outro amor

Textos

A Mulher do Tempo
Casado há bastante tempo, vim percebendo,ultimamente, uma peculariedade na minha mulher até bem interessante e nervosa.

É mesmo loquaz e pertubadora para meus sentidos e todo meu complemento de ser.Só não divago mais pois pode refletir mal para sua reputação de mulher dona-de-casa e cumpridora de seus afazeres domésticos.

É mulher plena: limpa e varre a casa o dia inteiro. Quando acordo, lá está a linda mulher com a vasssoura na mão. Se não é o chão,são os vidros ,sempre impecáveis de brilho, que nem refletem seu suor despendido na faina missão.

Cuida dos filhos, do jardim, da casa, dos empregados, das compras e até quando vamos vender alguma coisa é ela que decide.

De minha parte sinto orgulho.

Enquanto ela faz isso tudo, eu começo a fazer minhas ligações telefônicas. São bookmakers e coletores de apostas, que me esperam com avidez, pois jogo,e, na maioria das vezes, ela nem percebe.Mas eu geralmente saio perdendo. Mas vício é vício e a gente tem que manter.

Mas estava mencionando de um detalhe pertinaz de minha mulher. Ela tem uma memória fabulosa. Guarda tudo na cabeça.

E vem ela com as conversas: "Sabe, Antônio (é meu nome), Viviquinha (é a gata), faz hoje 3 anos e 2 dias!

Eu fico quieto, pois mal sei contar minha idade, que sopra longe.

Outro dia ela disse: "Sabe, benzinho hoje faz 23 anos, 2 dias e cinco horas que minha avó morreu".

Eu finjo ser triste porque senão ela desanda a chorar.

"Ela morreu - continua ela,fitando pro teto, no mesmo dia que meu pai nasceu: às 15h do dia 17 de dezembro, no Hospital da Cruz, ali no quarto 19. A enfermeira se chamava Maria e o médico.Ah! o médico, dr. Zequinha, morreu há 5 anos e dois dias, de pneumonia. Ele até que não sofreu muito: foram 4 dias e 4 horas de agonia lá no quarto 6.

Disfarço o quanto posso pois minha mulher estava entrando numa menopausa incurável ou sofria de algum mal estar no cérebro.

Estávamos jantando um dia destes e saiu o assunto do jardim, que precisava de uma reforma.

Não teve jeito. Ela começou: "Quem construiu este jardim debaixo de sol e chuva fui eu - falava enquanto comia, indiferente -. Foi no dia 28 de fevereiro, o outono que começa em abril ,isso daqui há 15 dias, e 5 horas, já vinha com seu vento frio e eu não desanimava.

"Levava 3h por dia cavucando terra e plantando semente, compradas na venda do seu Zé, que, aliás, faz hoje 2 anos e meio de sua morte. Morreu numa hora sagrada: 6 horas da tarde. Eu me lembro porque tinha comprado, naquele dia, meia dúzia de botões,um par de meias de seda e... 5 alfinetes e 10 colchetes, prá endireitar meu vestido, lá no armarinho de dona Zezé, aliás que aniversaria amanhã.

Faz 83 anos. Até que está durando bastante. Seu marido morreu faz 10 anos e 19 dias. Foi um enterro e tanto. Saiu, em ponto às 4 horas da igreja, mais só foi enterrado as 5 e 15. Tinha 23 oradores na fila prá falar no enterro. E o monsenhor Carol, que tinha, na época 56 anos e meio, orientou todo mundo que ia falar, dando 5 minutos e meio para cada um. Foi uma cerimônia bonita que durou 1h e 45 minutos!

Eu não falava nada. Comia silencioso e só pensava: pode existir mulher do tempo? Que guarda com rara preciosidade tudo o que acontece em volta dela e com números que me confundem e atordoam? Todas as coisas que nossa memória joga fora,ela guardava. Uma parada! Nunca vi uma igual.

Tudo o que ela fala tem passado, tem história, é cheia de hora e detalhes que eu não conseguiria guardar nunca. Aliás, nem sei o que almocei hoje.

Escrevo essas linhas no intuito bondoso de uma ajuda. Se alguém souber de uma mulher assim - Mulher do Tempo -, que me escreva, pois eu não estou suportando mais!

Já rezei, já pedi à São José, oro à noitinha, depois da corrida de cavalos. Tudo, mas tudo, para que minha mulher large esse negócio de guardar datas, de tudo o que acontece na vida dela,e da minha, e de toda comunidade provinciana.

Ontem mesmo, eu estava acordando e veio ela:
- Meu bem, parabéns...
- Porque mulher, de quê? - ainda caindo de sonolento.
- Nós fazemos hoje 18 anos, quatro dias e duas horas que nos casamos....hoje é nosso aniversário. Ah! - disse ela surpresa com ela mesmo -. Espere...
- Sim espero - disse eu, com os cabelos convulsos na testa.
- Errei - disse ela.
- Errou? - Perguntei meio incrédulo.
- Errei. Quem faz anos de casada hoje é dona Mariazinha, casada com seu Zezé, que está com 75 anos. Ela faz faz 18 anos, quatro dias e duas horas que casou...
- Mas onde está o erro? - perguntei - é aniversário, acabou!
- É que eu errei: hoje faz 18 anos, quatro dias e uma hora que nós casamos.
- Não é possível, que diferença faz? -- perguntei eu,ingrato.
-E ela: Ou você não se lembra que, antes de casar, foi pro bar do Pinguá, lá na rua dos Almeidas, e tomou quase 10 cervejas e duas cachaças? E me chega,com bafo de cachaça, uma hora de atraso por casamento! Ou você não se lembra?
- E eu, desanimado só tive tempo de dizer...lembro sim, lembro de tudo.

Finalmente acreditei: estava casado com a mulher que tinha a doença do tempo. E um vago conselho que dou aos iniciados no casamento. Faça um teste com a mulher antes. Pergunte qualquer coisa boba. Vê se ela se lembra da data e dos detalhes. Se souber, meu amigo, sinto dizer, mas você vai casar com outra Mulher do Tempo.
José Kappel
Enviado por José Kappel em 07/04/2006


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