José Kappel

Um amor sobrevive a outro amor

Textos

A Mãe do Prefeito
Assisti, por curiosidade e como cidadão apaziguado, a uma pertinaz sessão plenária, na Câmara de Vereadores de uma cidadezinha qualquer deste interior do Brasil.

Não foi por quer, sou capaz de jurar. É que, tendo a profissão de viajante, percorro quase todas as cidades do nosso Brasil e sempre tem um programa erotizado para se fazer: conhecer vizinhas avulsas, maravilhosas e solitárias.

Só quem tem experiência do assunto pode descrever a maravilha de conhecer algo novo e sensual que ronda por este Brasil afora.

Mas vamos lá. Naquela noite, perdido no centro do Brasil, não encontrei vizinhas em liberdade. Parece que todas as mulheres resolveram se esconder em casa ou se trancarem em casa com seus amantes.

Tentei de tudo, mas parece que eros estava ausente. Andando pelas ruas, sempre mal-iluminadas e cheirando a flores, fiz o melhor que pude fui na numa sessão da Câmara Municipal - destas milhares que existem no Brasil.Um prédio luxuoso que contrastava com a cidade, com o poder aquisitivo do povo. talvez aquela iluminação feérica tenha me atraido para seu interior.

Sentei sozinho. Não havia viva alma num plenário que mais parecia uma capela mortuária. Havia uma fileira de 12 cadeiras por 8 fileiras. E eu sentei sozinho no plenário.

Ao sentar numa dela, tudo rangeu e os olhares dos senhores vereadores bateram em cheio em minha pessoa. Rude em política e alheio às coisas pública que estava ali ou para ver a sessão ou tirar uma soneca, depois de tomar alguns aguardente. Certamente para cochilar.

A sessão começou. Havia no plenário cerca de 8 vereadores, todos eles engravatados. Parecidos com aqueles que vão a um casamento ou a um enterro, por obrigação, e colocam aquelas roupas desprogramadas e com as mangas enxovalhadas de suor.

Um vereador, para minha surpresa, mandou constar em ata minha presença. A coisa ficou meio sem graça. Foi preciso eu levantar e dizer meu nome. E foi constado em ata que eu estava lá.

Apesar de meus olhos tentarem cair no ostracismo do sono, eu me mantinha firme. Aquela noite, todos iam falar para mim e certamente quem era eu, ou se votava pelas redondezas. Eu tinha mais é de ficar atento. Quem sabe se outro vereador não me chamava para alguma coisa? Só prá me agradar?

A sessão - como disse - começou -. Encralavrada e titubeante na voz do Secretário. Ele tinha um montão de papéis sob a mesa à sua frente. E começou o blá-blá-blá. Votos de congratulações para fulano, voto de pêsames para sicrano.

E eram votos e mais votos que não acabava mais. Quem nascia ou morria ia sendo mencionado. Quem casava ou sofria alguma acidente, tinha seu nome mencionado naquelas infindáveis Indicações. O poder da democracia estava ali

E isso durou mais de hora. Eu fatigado e já opressivo com tanta inutilidade. Mas fiquei sabendo, para minha cultura, que nasce mais gente do que morre.

Depois, outro montão de papeis.Todos timbrados e tenazmente batido à máquina, por secretários que tinham alto salário só para isso. Eram os pleiteadores de obras para cidade.

Devia haver umas cem folhas que foram lidas durante mais de outra hora. Era um tal de asfaltamento: onde era terra, de terra passar para calçamento, de calçamento para asfalto, de asfalto, para deixar como estava antes.

Sinalização em pontos perigosos na estrada, proibição para que crianças andassem de bicicletas nas calçadas da cidade. E uma terrível inutilidade que arranhava meus umbrais democráticos.


E para meu desespero havia mais. Pedido para construção de passarela numa rua que tinha apenas uns quatro metros de largura; pedido para ver as contas do prefeito...Ai a coisa esquentou. Falaram do prefeito e seus defensores logo se levantaram.

O pedido de informações atiçou um pouco a mornosidade do ambiente. A oposição formada apenas por quatro vereadores queria saber onde o sr. prefeito havia conseguido dinheiro para reformar sua casa e comprado uma casa de praia.

Os posicionistas logo se levantaram. Um deles falou: sr. presidente, pela ordem, peço a palavra, esta matéria é assaz ( meu corpo se desfez em pedaços gramaticais) contrária ao parágrafo número tal do Regimento Interno da Casa, pois ninguém pode se envolver com os assuntos pessoas do prefeito - sua vida particular.

Outro vereador falou: Sr. presidente peço a palavra. E foi dada. Sr. presidente, srs, vereadores, disse ele, a matéria está na Constituição pois o sr. prefeito, segundo denúncias de um jornal local, comprou as casas com o dinheiro público.

Protesto e peço a palavra, rumorejou outro vereador. Sr Presidente, srs. Vereadores, estamos ultrapassando os limites da loquacidade particular do sr. prefeito. Quem quiser denunciar, que denuncie com provas.

Peço a palavra - levantou outro vereador da posição. Sr. presidente, srs. vereadores, pelo que me cabe a dizer a casa em questão foi comprada com o dinheiro que o sr. prefeito ganhou de herança da mãe dele.

E ai bradou outro vereador: E esse prefeito tem mãe viva? Mentira, sr. Presidente a mãe do sr. prefeito já morreu, e eu posso provar e nunca houve essa história de herança, se todos nós formos amanhã no cemitério eu posso mostrar seu túmulo.

Ordem na Casa, disse o Presidente. Senhores falou ele, isso é apenas um requerimento que ainda vai para as Comissões para ser analisado e devidamente esquadrinhado.

Vamos deixar para discutir esse assunto na hora devida. E o outro falou imediatamente: peço a palavra sr. presidente. Com a palavra o vereador requisitante.

O assunto não é bem esse.Na verdade o que eles querem é desminguilir a figura do prefeito, dizendo que ele não tem mãe!

Com a palavra sr. Presidente - conclamou outro vereador afoito: ninguém aqui disse que o prefeito não tem mãe. Foi dito , e consta da ata, que a mãe dele está morta, enquanto outros disseram que ela está vida.

Se está viva, como pode ter deixado uma herança?E surgiu outro: com a palavra sr. Presidente! Vamos constituir uma comissão de cinco vereadores e vamos amanhã mesmo ao cartório e ao cemitério constatar a verdade.

Não conheço a senhora-mãe do prefeito,nem sei se era uma senhora de posses, nem sei se ele tem ou não mãe, mas temos que deixar essa história clara!
Peço a palavra sr. presidente - retrucou outro vereador - mais estão ultrajando a figura da mãe do prefeito.

Peço a palavra. - disse outro. Pela ordem, disse o presidente. Com a palavra o vereador que pediu a palavra. E porque vocês não telefonam agora pro prefeito e perguntam se ele tem mãe ? Se ela esta viva ou morta? - propôs o vereador.

E um vereador falou: No intuito de preservar a verdade eu proponho que seja exumado o corpo da mãe do prefeito, se ela tiver morta ou nos tragam um atestado que ela esteja viva. Ou senão fazemos o exame de DNA, viva ou morta.

Mas o prefeito não tem mãe! - bradou um vereador posicionista.Vocês querem fazer exame de DNA na mãe do prefeito ainda viva?

Eu proponho a exumação!- disse um chegado a filme de terror.
E que o sr. prefeito nos traga o Imposto de Renda da mãe dele. Ai saberemos se ela está morta ou não, se tem posses ou não.

Quando ouvi isso, tratei de me mandar em nome da democracia e do bom senso. Fui saindo devagar, e vendo aquela pilha de proposições e projetos e indicações ainda para serem lidas, o que devia levar mais umas duas horas. Bem, depois tinha a hora livre de debates.

Jurei em nome de minha mãe que jamais voltaria outra vez a uma Câmara. E peço a palavra em nome da democracia constitucionalizada: lá só dá doido!
José Kappel
Enviado por José Kappel em 12/04/2006
Alterado em 04/11/2022


Comentários

Tela de Claude Monet
Site do Escritor criado por Recanto das Letras