Se Somos Dois...
Sou justo, cristalino, inclinado, perfaço a água, como infusão, de um brado de amor; sou aquoso, oxidante, perfurador de ânsias, barítono de uma grandeza que me fez um dia, rei dos feéricos. Rústico, de qualidade suspeita, até precária, rodo mundo como um riacho sem precedentes: nada me aguarda, as portas estão fechadas, sou piracema lustroso e caminhante rodeado de sal. Axés! Rodo à volta, e nela goteja louro-cerejas que formam frutos, que, algum dia, será água de rosas mas sem face, com presença falida, em minha borda mortuária. E rodo mundo sem cordas, e enfrento lagos, fontes, brandeado de chuva. Até vento de ordem! Sem valor, mais zeloso, rodo por dutos seculares, destilado, meteórico, de tamanho fácil e cheio de dores vacilantes. Se somos dois, somos parte da água, lustral das flores e musgos, percorrentes da vida e da morte - lá onde cai o sol e levanta a lua. Se somos dois, somos parte, e dentro de amores, a gente jura, sem querer, o que hoje é dormente amanhã será diferente. Nas águas panadas levamos o sabor amargo da despedida. Mas, sem cores aladas. Um dia você se foi avoada, como rolam águas, sem jeito de partir. Um dia você se foi como coisa do passado. E teve gente que disse: lá vai ele: carregado de intrigas e pouco perdão. Lá vai ele - diziam - O homem que veio da noite, disfarçado e descobriu o fogo, a pedra e a água. Mas, desvendado de carinho, foi morrer entre os reluzentes marinheiros de alguma praia sem nome e perdida. Lá na fervura, onde aquecem o gosto do amor-mar, de cerejas e espinhos, e dormindo, pra sempre, ao lado de uma definhante água-marinha. José Kappel
Enviado por José Kappel em 12/06/2019
|