Cinema Espetacular
Sou do tempo
de dois homens e uma porta: por uma eu entrava, por outra ele saia. Coisas de avós. Não que ele me desprezava mas evitar era bom; criança tão notável sem nenhum predicado. Foi naquele tempo que já fala tão longe que, com calças curtas e boina preta, segui o homem - meu avó de setenta e poucos anos - pelo buraco da fechadura que levava à rua. Rua das putadas! Me coloquei a perseguí-lo como total alvoroço e pertinaz angústia: afinal que fazia todas as noites aquele homem, já bastardo de mulheres e vinho, pelo antro temeroso de toda noite? Me coloquei na rua e segui seus passos, como um agente secreto - que, diga-se de passagem - só foi inventado depois, pelo cinema. Quer dizer, fui um dos precursos de perseguição, sem armas letais, lembrando apenas o que Dick Tracy faria numa situação dessas. E sobe morro e desce ladeira: noite estranha: homens parcos gordos,magros,dos mais variados sexos, às portas de botequins. Uns falavam alto segurando copos que não paravam em suas mãos. Outros açoitados pelo vento do sexo, acotovelam-se em saias e colchetes de mulheres. Até que ele parou numa ladeira bem íngreme e mal iluminada onde já se juntavam outros senhores cavaleiros à porta de um grande galpão. Ladeira das putadas! Subi, mais estreito e masculino: quieto e temeroso. Me escondi atrás de uma moita e ouvi um rumorejo de vozes roucas. Me aproximei mais e já percebia o tom de algumas vozes: "É hoje...finalmente nós conseguimos", e outra voz voz repetia: "Até que enfim que Adalberto conseguiu". - Adalberto, por acaso era meu avô. Vamos esperar Alfredo e Goitacás. Faltam ainda Antônio e Joel. E durante alguns minutos eles ficaram se gabando daquilo: que conseguiram, que chegou. Enfim uma tal felicidade que só dá nos homens velhos. Passaram-se alguns minutos e chegaram todos. Entraram todos no galpão e trancaram o grande portão com uma grossa fechadura. Me desloquei um pouco para o meio do galpão e, por uma fresta de madeira, arranhada de teias de aranhas, pude ver aquele monturéu de gente sentada no galpão, na semi-escuridão, com baforadas de churutos por todo canto. Minutos depois se fez silêncio e uma máquina antiga e rangenta começou a rodar um filme de sacanagem com som. Isso mesmo com som. O dono da proeza havia sido meu avô - homem muito respeitado na região e com grandes contatos no comércio exterior. Por amigos vim a saber, alguns dias mais tarde que, todas às segundas, aqueles homens se reuniam para ver filme de sexo. Mas até então, eram todos mudos. Até que o bravo de meu avó, com grande sacrifício e tenacidade loquaz, havia conseguido um filme falado. E desde aquele dia, sem saber porque, sabendo apenas que meu avô era dono de um puteiro cinematográfico, fiquei cercado de muitos amigos-grandes, mais velhos e crescidos do que eu,barbentos, que me pajeavam toda hora, querendo que eu roubasse ingresso de meu avô. Todos queriam uma entrada para entrar no galpão.E eu uma saída interior para uma ponta de dor que sentia. Era o verdadeiro início do cinema para mim e para minha família que guarda este rastro de meu avô e que me acabou me transformando numa grande angústia de infância. Mas um dia, ainda pequeno, trepei no telhado, junto com alguns moleques, e pude ver, durante 10 minutos, o maior filme de pura sacanagem de todos os tempos: uma mulher e uma mulher transando durante todo o tempo.
José Kappel
Enviado por José Kappel em 07/04/2006
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