José Kappel

Um amor sobrevive a outro amor

Textos

Homem Sem Texto
Estive a andar com um homem sem texto.

Ele caminhava assonolado pelas brechas de sombras que se abriam em seu caminho.Azaléas e pardais se misturavam: um, batido pelo vento morno; outro, dançando ao sabor da manhã.

Nada insuperável, nada imperdoável. Coisas comuns de gente que lavra a manhã sem seu texto.

Ele não ameaçava um sorriso.Nem desbravava qualquer atitude de ódio.Era um sesmaria. Levitava apenas a andar sem complexos.

Depois de se envolver, por alguns instantes, com a inutilidade da paisagem, com caos do sol,do mutismo das sombras e dos pássaros zuléos, ele parecia voltar a si: era realmente um homem sem texto.Por isso,andava quase arqueado.


E por ser assim, era uma pessoa normal. Cruzava com centenas de outras pessoas, por onde andava, e ninguém, sequer, o olhava. Por ser comum, igualava-se à rotina do tempo. Por ser igual, deixava-se carregar pela insensibilidade das pessoas.

E, com ele andei um bom tempo, já carregado de cansaço. Numa mudez intemperante. Estava ao lado do homem sem texto que nem razão prá existir tinha. Aliás não tinha razão ou esperança para conquistas ou percas.

Deixei-o seguir seu caminho. Nada mais podia fazer. Ele seguiu em frente... nem adeus disse.

Ele não tinha o texto do dia que o tempo lhe ortogou. Tornou-se assim um amálgama sem fluídos. Aquele que não tem tempo, não tem texto. E aquele que lhe falta o texto é um espelho de uma vida sem reflexo, um passageiro que se carrega.

Sem o texto! Como ardia de terror aquele homem, como dançava entre a solidão e o tédio.

Morreu tempos depois. Ninguém foi ao almoxarifado de sua morte prestar algum tipo de homenagem.

Morreu sozinho, sem vida, aquele que era o Homem Sem Texto.

José Kappel
Enviado por José Kappel em 22/04/2006


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