José Kappel

Um amor sobrevive a outro amor

Textos

A Boneca do Porão
Passando em revista minha vida, fui ao sótão procurar por coisas úteis. De inúteis já estava estafado!

Há tanta frescor de banaliddades rondando nossas vidas que nos parece tudo normal. Tinha que encontrar o lado alvo de minha vida e pensei logo no sótão.

Que coisa maravilhosa é você participar de achados preciooas, dentro de você mesmo, que um dia inundaram suas horas de felicidade.

A primeira coisa que encontrei, atiçada e bela, num canto empoeirado, foi uma formidável boneca de porcelana. Rosto estilhaçado, mas guardando ainda um frescor inimaginável.

Havia, certamente, outras bonecas jogados ao léu. Mas não eram tão importantes como aquela.
Seus olhos esverdeados ainda pareciam espargir de vida. Sua face rosada era saliente e pura. Nunca tivera uma boneca antes dela, e me lembro de ter passado com ela vários anos de minha vida.

Eram brincadeiras de criança de 18 anos, mas ela ficou para sempre gravada em mim. Seja porque ela, carente de vida, e eu carente de amores, seja porque não havia paredes divisórias entre nós. Éramos irmãos de espíritos.

Apenas um mundo e este mundo era inviolável. Ninguém entrava, ninguém saia. A morte que aproximava todos àquela época - 1917 - não rompia nossas barreiras.

Representávamos a vida e brincava entre nossas mãos uma eternidade que se tornava inviolável com o passar dos dias.

Era a pujança da vida que representava. Era o oposto das coisas normais.

Era um contra-censo interior que nos fazia viajar por entre vagas estrelas de um céu imperdoável e fumegante, onde não havia anjos ou castiçais.

Um dia, já com 19 anos, o mundo começou a desmoronar - como qualquer outro mundo que se preze. Independente de nós, de nosso rejúbilo, era tomada por forças maiores e mais estranhas. Era a verdadeira vida que se aproximava. Talvez com um chicote na mão dizendo coisas inaudíveis e ferrenhas.

Primeiro foi só um aviso, mas depois, fui carregado pelos ares do inverno e posto bem longe dali. Fui levado para o mundo dos homens quebradiços e embriagantes. Mas, sequer um dia, deixei de pensar nela.

Sabia que à minha volta ela rondava a procura de meu espírito, minhas querências. Procurava dentro de meu vazio, que parecia eterno, me contemplar de augustos e velas.

Mas o tempo é imperdoável. Sem ao menos perceber, não só estava longe dela como, pior, longe de mim mesmo. Na cidade grande perdi os valores e sentimentos. Me perdi dentro de meu labirinto.

Me deixei levar por ondas que não havia onde rebater. E assim me perdi para sempre, apesar de ser grande, com um certo calor de beleza e profundamente amante.

Mas longe havia ficado minha boneca de porcelana. Hoje sei que jaz sem vida, mas seus olhos - eu conheço - com seu seu espírito vibrante, sempre me ronda, sempre à procura de um calor infindável!

Porão, porão, pobre porão de coisas inacreditáveis, de infelizes amantes humanos !
José Kappel
Enviado por José Kappel em 12/05/2017
Alterado em 27/07/2017


Comentários

Tela de Claude Monet
Site do Escritor criado por Recanto das Letras