José Kappel

Um amor sobrevive a outro amor

Textos

Me Sinto Só...
 
De minha janela vejo o início e o fim da coisas. De minha janela, vejo o pássaro bordar o céu em voo rasante e cinzelado. De minha janela vejo operários e cristãos. Tochas avulsas e homens de cordel. Vejo, à tardinha, todo mundo passar com um pão nas mãos.

De minha janela, não sou perdoado, pois vejo o que não devo. De lá cambreiam mulher e vizinhas. Pedreiros e alfaiates. Todos carregam um pedaço de pão.

Às vezes, me pergunto para onde vão com tanta pressa? - Pressa? Vão correndo pra algum lugar que não descobri qual seja. Mas pela hora, julgo que tomar café com pão.

Um passa e dá um adeus. É o pipoqueiro que empurra sua carrocinha meio sombreiro, mas tem tempo de me saudar.

Outro que me saúda, jovial, pesado e trôpego é o pároco das seis. Ele vem da missa daquela hora, e como havia poucos fiéis - e eu entre os que não havia - muitos deles indecisos e correntes, ele resolveu encurtar a missa. De uma hora passou para meia. Rezou rápido como se fosse crucificado. Tava indo pra casa do monsenhor para dirimir sua ansiedade de culpa. Levava um pedaço de pão como oferenda ao homem santo.

Passa a primeira vizinha e me dá um olá. Eu disfarço minha ansiedade e torneio o pescoço para o outro lado, mas digo olá desviando rapidamente os olhos, com medo de maridos carnívoros de ciumentos.

Vem outra vizinha com uma cesta de pão. Tem dez filhos. E haja pão, todas manhãs, para abocanhar a fome que recruta daquelas bocas. O pai é um pobre operário de uma olaria. Faz tijolos o dia inteiro. Chega em casa à noitinha e come pão e toma sopa.

São os falsos miseráveis que rondam minha janela, numa manhã qualquer, de um mês sem nome, de um dia sem data.

Peço permissão para dizer que minha redondeza é famosa: há muitos crimes passionais, mas comedidos, na medida que um crime pode ser tênue.

O carro da polícia volta e meia está escorregando diante de minha janela. Eu os saúdo. O policial me acena com a mão calosa e uma 45 na outra. Saúdo-o como não estivéssemos em guerra permanente.

Passa outra vizinha. Essa é mais atiça e rompante. Está sempre carregando alguma coisa. Ora um embrulho, ora um pão, ora um jornal vencido, ora um pedaço de pau. É a hora perigosa, pois certamente ela está atrás do marido, que se encontra sempre no botequim das mulheres tomando café com pão - diz ele.

E passam crianças escolares, jovens meio desnudas a procura de rapazes da mesma forma; passam jardineiros com tesourões enferrujados a procura de jardins escaldados pelo sol.

Um dia me assombrei de rescaldo. Uma bela manhã azulada eu me perdi em pensamentos e, quando abri os olhos, me vi passando com um toco de pão do dia debaixo do braço.

E para não perder a cortesia levantei o braço e me saudei. E eu gritei lá de longe, dizendo apenas que ia tomar café com pão.

No dia seguinte conversando com meu psiquiatra, pois sem ele não vivo, contei o acontecido e ele diagnosticou o caso na hora. Solidão brutal e falta de infância aliada com falta do que fazer!

Que coisa ! Na saída da consulta, parei no primeiro bar e pedi uma média com pão e manteiga.

Puxa, como me sinto só...
José Kappel
Enviado por José Kappel em 30/12/2019
Alterado em 06/01/2020


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