Não aguento mais ser todo dia, bom-dia,
à tarde, boa-tarde, ver o sol nascer, quando ele aceita, ver as mesmas manchetes dos jornais, de políticos honestos, de gente tão bem intencionada, que acaba nas prisões, ver também tanta gente inocente presa dentro de si mesma. Não aguento mais ver a tristeza e ameaças de guerras, de homens serem estrepoliados, de virgens indispostas, de amores desfeitos, de irmão contra irmão, de famílias em crises, de bondosas mães que perdem seus filhos em vida. Tudo complicado, muito complicado. Não aguento mais ver o meu jardim que não floresce nem com adubos de olhos mágicos, nem num milagre ocasional. Não aguento mais ver o trem, o bonde e o avião. Já não posso entender as coisas pois são todas iguais: os ricos mais ricos, os pobres,mais pobres, carregados pela bandeira da minguada carência do políticos. Não aguento mais ver a bondosa mulher distraida, ser agredida, ou o homem bêbado, derrubando paredes com socos e chorando,depois, de sua franqueza. Não aguento mais ser ameaçado de velho, ou confundido com criança de bala, ou ser transformado em museu na rotina do dia, pelos que não tem e não sabem como ser. Difícil, muito difícil, pois as coisas sobrevivem sem coerência! Não aguento mais ver os botequins de bêbados, ver o holocausto de mentes brilhantes, apagadas pelo ópio, que surra. Não aguento mais ver o jovem querer ser a jovem e a mulher querer ser o jovem. Decide, pombas - e faz ! Mas não desfila ! Ata e casa ! O amor não precisa ser divulgado. Cansativo, muito cansativo. Não aguento mais ver indecisos procurando soluções no vazio, e os vazios achando que a solução está nos guerreiros vacilantes, onde rodopiam com copos de cristal lotados e à esmo,mas em mãos de solidão. Tenho medo da pedra que rola, da terra que absorve, dos mortos de ontem, que estão enviezados de eternidade. Muito cansativo, cansativo demais. Não aguento mais festas,aguadas, churrascos,coquetéis: todos me levam a mesma cadeira: a do ócio, do semblante de falsa fala, de solidões muito transparentes, regadas à vinho e tropicais entorpecentes. Não aguento mais ver mulher nua, de revistas que a vendem para depois esquecer e fazer nascer mais uma mulher endoidecida pelo poder da beleza que acaba morrendo de ócio e pó. Cansei. Cansei.... Hoje, gritando com o passarinheiro, o adverti de sua impopularidade ao remanejar o pássaro para uma liberdade cruel: sua cela-gaiola feita de madeira envernizada. Bala quase levei. E já que cansei, faço como Romualdo, um vizinho de três léguas, que pôs uma corda no pescoço e, antes de morrer, disse: - Cansei...cansei dos homens e de suas fúteis rotinas e ansiedades. E para alcançar a eternidade basta uma vontade de ir; e duas vontades de ter uma corda de fios de mortalha. Ai, é só dar o nó, onde o fraquejo do homem é de aparência mais fraca ! E morre mais um! Cansado, muito cansado... José Kappel
Enviado por José Kappel em 24/02/2020
Alterado em 24/02/2020 |