Eu tenho pouca coisa - fiz vistoria -
igual a fiscal de rendas, tolice geométrica-alada, pois me indiciou e descobriu que eu tinha a mulher do lado. Vistoriei meus bens. Eu tenho: um pacote de balas de crianças, um retrato da Primeira Comunhão, tenho também uma cruz quebrada, um par de alianças esquecidas, cartas opacas - de amor eterno, e um terno de missa. Tenho também: uma vasta coleção de revistas velhas de mocinho e bandido, e também de modas passadas, com mulheres replandescentes que, hoje, nem brilham tanto. Tenho tudo guardado com medo de gatunos; tenho-os alguns, em caixa de papelão, outras embrulhadas às pressas, em papel-carmim, com medo de mim mesmo. Tenho também uma caixa de fósforos vazia. Onde guardava os brinquedos que nunca tive. Tenho um maço de papel onde pretendia escrever minhas memórias. O papel amarelou e as ideias desapareceram. As memórias ficaram à revelia. Foi esta ferida que faz minha história de leva-vida. Que levou tudo, pois devido - destino atroz - a idade que tenho, esqueci a maior parte do que ia dizer aqui. Esqueci meu passado, quase todinho, e dele, só me lembro de ter tido uma mulher. História meio trancada de esquisito. Mas dela, ah! me lembro, raramente. Sempre de saia grossa, com um cachecol avermelhado, que lhe caia muito bem, pois o pano lhe escorria até os seios ameaçadores. E me lembro que ela até se iluminava como estrela, com aquela roupa feita de rendas, pela avó desconfiada. Foi tudo que me restou. Hoje só olho pela janela e penso comigo: que coisa larga é a vida. Uma hora você é dono das coisas, noutra as coisas donas de ti. E digo: sim Senhor! Senhor das espirais, dono da vida e da morte, não rogai por mim, pois tal desavença, não mereço. E minhas memórias também vão partir. Sei, pois conheço o Sr. da corda-bamba, cheio de felicidade, que a qualquer instante, vai me colocar lá na eternidade. Pior - com a memória penhorada. José Kappel
Enviado por José Kappel em 06/12/2020
Alterado em 15/12/2020 |