José Kappel

Um amor sobrevive a outro amor

Textos

O Futuro do Tempo

Tenho pressentimentos que me rondam dia e noite. Tenho palpites que me remoem às noites e mesmo ao calor do sol.

Sou um pequeno viciado em coisas grandes. Por isso, meu pensamento revoa como uma névoa matinal cortando a vegetação e a mergulhando, já aguada, em dúvidas e ansiedades.

Isso tem a ver com todas as pessoas. Tem a ver com todas as vidas e mortes.

Meu tempo de vida ficou há léguas diante da vida. Tudo passou tão rapidamente que parece que foi ontem que usava calças curtas e andava nos imensos bondes. Guardo lembranças de odores de velhas estações de trens que povoaram minha infância.

E a gente vai crescendo e criando raízes, além do tempo. Não é à toa que o tempo não o deixa percebê-lo. Sua missão é passar, inovidável e invisível, e ampliar sua quietude a nos massacrar como um tenor que vai levantando sua voz lentamente.

Nada é impossível, mas também tudo pode. Quando você conquista o tempo é sinal que acaba de perder seu controle. Quando você percebe as coisas que tinha nas mãos, percebe também que acaba de perdê-las.

Sou ser breve nas minhas contas. É a matemática da vida. Ou da morte.

Parece que foi ontem que sentávamos na pracinha e esperávamos o trem passar, sempre fumegante e trêmulo, avançando diante de nossa memória.

Vou tentar ser rápido, sem ser clássico ou obtuso.

Parece que foi ontem que conquistei a primeira namorada. Que levei o fora, porque não entendia nada de namoradas, como hoje, ainda, não entendo.

Parece que foi ontem que atravessava a pracinha e comia, indolente, pipoca e algodão doce. Ou que enterrei meu avô. Parece que foi há instantes que fui, cabisbaixo, mas contente, ao enterro de sua amante.

Foi há instantes que socorri meu tio, numa imensa escadaria, aos tombos e solavancos, depois de um derrame. Verdade seja dita: morreu de tanto beber e quando subia a escadaria carregava um litro de aguardente sob os braços. Ele pode ter morrido sem honra, mas não largou o litro em nenhum momento. Rolou vinte degraus, mas a garrafa chegou lá embaixo inteira.

Parece que foi ontem que enterrei meu pai, após um ataque do tal coração. Depois dois primos, vítimas do trânsito. E, ainda, minha tia que morreu na manhã de Natal. Ou que sepultei outra tia que sofreu um derrame, também no Natal, só que à noite. Papai-Noel, naquela noite, foi rapear alegrias em outro lugar.

Hoje, tudo parece que foi ontem. Mas agora, fazem exatamente 4 horas que sepultei minha mãe.

Coisas do tempo. Esse tempo, inesgotável de mortes, que vai deixando você sozinho e mais sozinho com as dores das perdas que você não pode nem ver, só sepultar.

Que toquem Ravel e façam um acordo com o tempo: não levem mais ninguém meu nas próximas horas, por favor... por favor...

Eu planto pra isso, porque meu futuro já morreu há tanto tempo! Foi com as coisas. Foi, triste, com meus mortos...
José Kappel
Enviado por José Kappel em 03/06/2021
Alterado em 04/09/2021


Comentários

Tela de Claude Monet
Site do Escritor criado por Recanto das Letras