José Kappel

Um amor sobrevive a outro amor

Textos


Acasos

Se ela passa é por pura comodidade. Se eu passo é por coincidência. E assim atravessamos a vida. Ontem, foi daqui há pouco. Eu ainda tinha medo de elevador - me lembro. Tinha medo de perder coisas que não tinha e gostava de uma aparente calma e uma tenaz tranquilidade. Mas tudo ficou no querer. De repente, desbotou o sol e surgiu o vento açoite e a noite acabrunhada. Pulei de quarto em quarto. Escorri pelos corrimões da casa. Me guardei com a ama-de-leite, mas foi tudo em vão: tudo desabou de repente. Cós e agulhas me espetavam e coalhavam um medo que só dá nos homens. Já pulei corda, é verdade, mas com segundas intenções. Aliás, as minhas jamais foram boas. Corri de boate em boate a procura de pelo menos uma alma parecida. Que nada! Deus esconde! Mas fui atrás e quase me perdi entre um vão e outro. Há poucas saídas quando se procura uma. Em Tijuana tomei tequila e, em Vegas, fui pedinte e operário de pratos. Tudo a procura de alguma coisa que tinha se perdido. Um elo partido que ficou do outro lado do mundo e eu não sabia sequer o caminho. Tomei vinho com prostitutas. Me perdi em noitadas da paulista onde pouco se dorme se você quer se vender. Pulei de mundo em mundo e cada um me parecia mais vazio. Que me importava aquela coalhada de gente em rebuliço de copos e luzes? Eu queria absortos e não sabia que havia não só me perdido como a todos que me cercavam. Então, em Marisco, tomei um ónibus e parti com desconhecidos. Conheci a escravidão. No entanto, hoje, ainda atravesso a rua por coincidência e ela cruza as avenidas por puro acaso.

 

Foto: Maria

 

Prosa 

José Kappel
Enviado por José Kappel em 19/03/2022
Alterado em 22/03/2022


Comentários

Tela de Claude Monet
Site do Escritor criado por Recanto das Letras